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Startup que usa inteligência artificial em alimentos a base de plantas terá produtos no Pão de Açúcar

Uma maionese que não é maionese; um leite que não é leite; um sorvete que não é sorvete; um queijo que não é queijo; e um hambúrguer que não é hambúrguer. Parece uma publicidade que tem tudo para dar errado, mas existe uma startup chilena que leva o contrário até no nome. Até Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, injetou dinheiro nessa ideia de negócio. Ela chegará ao Brasil nas próximas semanas, com o objetivo de transformar o país em seu maior mercado.

A The Not Company (ou “a não-companhia”) foi criada há quatro anos pelo economista Matías Muchnick, pelo cientista da computação Karim Pichara e pelo especialista em biotecnologia Pablo Zamora. Os empreendedores desenvolveram um algoritmo próprio, dotado de inteligência artificial, capaz de combinar diversos produtos a base de plantas para gerar sabor, consistência e textura iguais aos produtos de origem animal.

A NotCo, como é mais conhecida, obteve um investimento de 30 milhões de dólares de nomes como Jeff Bezos no início de março. O criador do comércio eletrônico Amazon possui uma fortuna de 131 bilhões de dólares, segundo a revista Forbes. Seu capital será usado para o desenvolvimento de produtos e para a expansão da startup chilena pela América Latina e pelos Estados Unidos.

Em visita ao Brasil, os fundadores falaram a EXAME sobre o começo do negócio e seus próximos passos, na companhia de Bezos, e apresentaram seus produtos à imprensa. Adiantamos: as não-comidas são saborosas e passariam por produtos comuns em um teste cego. Mas alguns produtos podem não agradar os viciados na consistência gordurosa dos alimentos industrializados.

Criando uma não-companhia

Cerca de um bilhão de pessoas dependem da criação e produção animal para sua sobrevivência e a demanda por tais alimentos deve crescer 70% até 2050, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Em 2017, 323 milhões de toneladas de carne foram produzidas globalmente, número que deve chegar a 367 milhões de toneladas nos próximos dez anos. O Brasil é um dos cinco maiores produtores de carne do mundo, ao lado de China, Estados Unidos, União Europeia e Rússia.

Porém, há consequências graves dessa atividade na sobrevivência do planeta. O setor ocupa um terço das terras aráveis em todo o mundo, com a decorrente degradação de 20% dos pastos e de 70% das áreas sem vegetação. A criação e produção animal usa um décimo do consumo total de água por humanos no mundo e gera poluição pelo uso de fertilizantes, hormônios e pesticidas ou pela emissão de gás carbônico em uma taxa maior do que a vista combinando todas as emissões de meios de transporte.

A Notco surgiu a partir da soma desses dados à desilusão do futuro empreendedor Matías Muchnick com o mercado financeiro. Graduado em Economia, ele passou alguns meses no banco J.P.Morgan e percebeu um denominador comum nas famílias abastadas que atendia: ao menos um dos membros havia empreendido. “Eu também queria resolver um grande problema e percebia a desconexão entre o que comemos e o que achamos que comemos. Você sai de um supermercado mais confuso do que entrou”, afirma.

Karin Pichara, Matías Muchnick e Pablo Zamora: chilenos se encontraram nos Estados Unidos e levaram a ideia da The Not Company de volta à terra natal (The Not Company/Divulgação)

Para o chileno, a indústria alimentícia deveria aplicar a análise científica a nível molecular em sua linha de produção, de forma similar ao que ocorre com o setor farmacêutico. “Considerando-se a tecnologia disponível, nossos avós faziam mais pela alimentação do que fazemos hoje. As companhias não investem em pesquisa e desenvolvimento porque não conseguem resultados justificáveis. E não conseguem resultados justificáveis porque não fornecem apoio suficiente. É um ciclo vicioso.”

Cursando uma pós-graduação na Universidade de Harvard (Estados Unidos), Muchnick acabou conhecendo os outros dois sócios da Notco: Karim Pichara, doutor em ciência da computação e especialista em machine learning, e Pablo Zamora, doutor em biotecnologia e especialista em bioquímica de plantas e genética. Também chilenos, eles estabeleceram o centro de pesquisa e desenvolvimento do que viria a ser a The Not Company em Santiago, no ano de 2015.

Uma inspiração clara da Notco é a Impossible Foods, startup californiana criada quatro anos antes e especializada em hambúrgueres feitos a base de plantas — o sangue da carne, por exemplo, é replicado com beterrabas. A Impossible Foods já obteve 387,5 milhões de dólares em investimentos, ou 1,46 bilhão de reais. Em resposta, a Notco está investindo no poder de seu algoritmo e em verticais que vão além da maionese, como leite, manteiga, queijo e até mesmo hambúrgueres, o carro-chefe da californiana.

“Apesar de a Impossible ser uma inspiração, estou olhando hoje mais para negócios como a Nike, que possuem um grande poder de branding. Queremos ser a marca mais lembrada em todas as categorias que atuarmos. O sabor dos produtos e a qualidade dos processos são apenas os primeiros passos”, afirma Muchnick.

As grandes redes de alimentação também estão tentando oferecer alternativas alimentares. O fast food americano McDonald’s já criou um lanche vegetariano, com queijo coalho no lugar do hambúrguer, e está testando um nugget vegano, feito de grão-de-bico, milho e batata.

A Notco afirma já ter tentado trabalhar com gigantes alimentícias, sem sucesso, e ter recebido ofertas de compra de sua tecnologia. “As grandes companhias estão em um impasse. Se a Kraft-Heinz lançasse uma maionese vegana, por exemplo, as pessoas ainda iriam associar o condimento a uma empresa de comida processada. Ao mesmo tempo, não usar uma marca com décadas de história em seu novo produto parece ilógico”, analisa o CEO da Notco.

Como criar a não-maionese?

A Notco possui um algoritmo por trás de seus alimentos à base de plantas. Giuseppe, o robô, analisa alimentos em nível estrutural e cruza informações de tabelas nutricionais, revistas científicas e os próprios testes em laboratório da startup chilena. Ao usar as informações corretas, replica sabores, texturas e consistências vistos nos produtos de origem animal.

Há muito material para ser usado: o mundo possui 300 mil espécies de plantas comestíveis, mas só consumimos 200 delas. “Por exemplo: o leite vem das plantas, na verdade, porque é isso que usamos para alimentar as vacas. Nosso sistema vê ligações que humanos não enxergariam e tira o intermediário dessa cadeia de produção, que é o animal”, explica Zamora.

Com a variedade de combinações, a não-maionese consegue ter gosto de maionese usando óleo de canola, grão-de-bico, sementes de mostarda, vinagre de uva, suco de limão, açúcar mascavo, pimenta branca e alho em pó. Ao mesmo tempo, a empresa diz usar 83% menos água e emitir 37% menos gás carbônico em sua produção em relação ao processamento de uma maionese comum.

A NotMayo, não-maionese da The Not Company (The Not Company/Divulgação)

A não-maionese da Notco chegou aos mercados chilenos em março de 2017, pela rede de supermercados Jumbo. Depois, foi às prateleiras da concorrente Walmart. Até hoje, a startup vendeu mais de um milhão de não-maioneses no Chile, em 1.000 pontos de venda. Possui 10% de participação de mercado no setor chileno de maioneses e acredita que pode dobrar o market share nos próximos anos.

Na apresentação dos produtos à imprensa, as maiores surpresas anotadas por EXAME estão nas réplicas de hambúrguer e de queijo da NotCo: o primeiro mantém um gosto de grelha, enquanto o segundo tem o sabor forte de um queijo rico em gordura animal. O não-chocolate com avelã da startup possui um sabor um pouco menos doce e até melhor do que o da marca italiana Ferrrero, criadora da Nutella.

Já a não-maionese, o não-leite e o não-sorvete são um pouco mais leves e líquidos do que os concorrentes industrializados, sendo similares aos produtos artesanais, como gelatos italianos. A textura pode não agradar quem está acostumado a produtos com consistência gordurosa e pesada, e o não-sorvete talvez seja doce demais.

O não-hambúrguer, com não-queijo, da The Not Company (Ian Scabia/The Not Company/Divulgação)

Surpreendentemente, o público da Notco não é o nicho crescente de veganos — nove a cada dez clientes da empresa comem produtos derivados de animais e o cliente mais comum é de classe média. “Colocamos nosso produto na categoria ‘premium acessível’.

Quem procura maionese no atacado não é nosso público, mas ainda precisamos ser mainstream para termos o impacto que desejamos. Não adianta querer vender uma supercomida vegana de nicho, que faça bem ao consumidor e ao meio ambiente, se ela não for saborosa a ponto de ter adoção generalizada”, afirma Muchnick.

Conquistando Jeff Bezos — e o Brasil

A Notco começou com um investimento de 250 mil dólares dos três fundadores. No final de 2017, obteve um investimento de 3 milhões de dólares do fundo KaszeK Ventures, criado pelos fundadores do marketplace Mercado Livre.

Neste mês, conseguiram um série B de mais 30 milhões de dólares. O aporte foi liderado pelo fundo The Craftory. Com sede em Londres (Reino Unido) e São Francisco (Estados Unidos), a instituição financeira possui 300 milhões de dólares e é focada em investimentos de estágio inicial em marcas de consumo de grande impacto. Outros investidores incluem o fundo IndieBio e o Bezos Expeditions, family office do criador da Amazon (e atual homem mais rico do mundo) Jeff Bezos.

“Bezos trouxe a inteligência artificial para o varejo online, e acredito que é por isso que ele vê potencial em nossa solução e uma sinergia com o grupo Amazon”, diz Pichara. A gigante do comércio eletrônico comprou a rede de supermercados com alimentos saudáveis Whole Foods em junho de 2017 e os fundadores chilenos esperam em breve uma entrada dos produtos da Notco em tais unidades. Muchnick destaca a equipe, a execução com recursos escassos e a ambição como pontos adicionais para a obtenção do novo aporte.

O dinheiro será usado principalmente para o desenvolvimento das novas verticais e para a expansão internacional. Os lançamentos mais próximos são o não-leite, o não-sorvete e o não-queijo, mas a Notco já testa seus hambúrgueres em uma lanchonete chilena.

Geograficamente, o próximo alvo de expansão é o Brasil. A Notco deve chegar por aqui no dia 15 de abril, vendendo não-maionese, não-leite e não-sorvete em 190 lojas do Grupo Pão de Açúcar espalhadas pelo país. A não-maionese custará “a partir de 10 reais” por aqui, em uma embalagem de 350 gramas. Até 2020, o Brasil se tornará o maior mercado da Notco. Dois dos 70 funcionários da equipe estão no país. A startup espera firmar parcerias e produzir suas não-comidas localmente, com uma indústria próxima à cidade de São Paulo.

É um esforço necessário: um dos maiores desafios da empresa é aumentar a vida útil de seus produtos nas prateleiras. A não-maionese possui validade de oito meses, se permanecer fechada e bem armazenada. Mais um desafio será integrar tais produtos com o delivery de restaurantes e supermercados, contornando o tempo fora da geladeira e o agitamento do produto durante o trajeto em motocicletas.

Ainda neste ano, os próximos destinos da Notco serão Argentina em México. Em 2020, será a vez dos Estados Unidos. O primeiro cliente da startup chilena por lá é a gigante de tecnologia Google, em acordo de food service já firmado.

Diante dos planos ambiciosos, a Notco espera aumentar seu tamanho em 10 vezes neste ano, na comparação com 2018. No ano passado, expandiu seis vezes em relação a 2017. A startup não abre números absolutos de receita. A Notco ainda não olha para o ponto de equilíbrio, diante do apoio de Bezos. Afinal, ele é o empresário que esperou anos até ver os lucros da Amazon.

Mas os chilenos também não pretendem deixar o resultado no azul de lado. “Queremos ser competitivos, mas também sustentáveis financeiramente. Bezos não olha muito para os lucros, mas precisamos mostrar aumento na nossa participação de mercado e impactos em longo prazo”, diz Muchnick.

Para dar essas boas notícias, a Notco precisa ser pop — e já está anotando os conselhos da Nike.

Fonte: Exame.

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