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O bife sustentável – Por José Graziano da Silva

A capacidade de se alimentar de forma flexível e abrangente teve influência decisiva no salto evolutivo da humanidade. A expressão “somos o que comemos” não elucida todo esse percurso, mas envia um lembrete oportuno à encruzilhada alimentar e ambiental da humanidade nos dias de hoje, com base numa dieta crescentemente proteico-carnívora.

Nos últimos 30 anos, o consumo de carne e outros produtos de origem animal (leite e ovos) mais do que triplicou em países de renda média e baixa, em razão do crescimento populacional, urbanização, aumento de rendimentos e globalização.

Tais fatores seguirão exercendo pressão. Projeções da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) indicam que o consumo de carne nos países de renda média e baixa deverá aumentar em cerca de 80% até 2030 e mais do que 200% até 2050.
Esse aumento substancial gera oportunidades, por exemplo, para o crescimento econômico, mas inclui também muitos riscos.

A agricultura moderna já responde por um quinto dos gases do efeito estufa que alteram o clima na terra. O controle dessa espiral é incontornável. Se não for bem sucedido, os fatos em curso e as projeções científicas apontam para uma rotina de desastres ambientais extremos. Eles podem devolver os homo ‘sapiens sapiens’ a limites de sobrevivência equivalentes às piores experiências vividas pelos seus antecessores mais remotos.

O setor de alimentos de maior peso nas emissões é a pecuária. De fato, o setor de produtos de origem animal responde por 14,5% das emissões globais de gases de efeito estufa. Cerca de 40% das emissões na pecuária proveem do processo de digestão do gado bovino, que libera o gás metano (cujo potencial para causar o efeito estufa é 25 vezes maior do que o CO2).

O rebanho global de bovinos é hoje da ordem de 1 bilhão de cabeças. O do Brasil, com mais de 200 milhões de cabeças, forma o maior criatório comercial da terra – a Índia, com 330 milhões, tem exploração pecuária fundamentalmente só para produção de leite, enquanto os Estados Unidos deverão superar o patamar de 90 milhões de cabeças em 2018.

Supor que o efeito dessas emissões possa ser corrigido exclusivamente com a reconversão à dieta alimentar anterior à expansão caçadora, há 2,5 milhões de anos, não é apenas improvável: seria, sobretudo, desperdiçar um precioso patrimônio de adaptação e versatilidade arduamente construído.

Também não se pode perder de vista que metade dos cerca de 770 milhões de pobres rurais no mundo, os quais sobrevivem com menos de US$ 1,9 por dia, dependem diretamente da produção animal. Na América Latina, tal estatística alcança quase 70% dos extremamente pobres, ademais de existirem imensas extensões do planeta, cerca de 30% da fronteira ocupada, cujo clima e solo prestam-se sobretudo à pecuária.

Nada disso, porém, autoriza a indulgência protelatória com o divisor ambiental em marcha: padrões de criação e consumo de proteína animal podem e devem mudar, em concordância com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

A experiência mostra que o ganho de produtividade na pecuária reduz entre 20% a 30% a emissão animal de gases de efeito estufa, libera áreas para a agricultura que precisa alimentar dez bilhões de bocas até 2050 e evita uma escalada do desmatamento nas fronteiras que vão arcar com a maior fatia dessa expansão. O Brasil à frente.

Quase 70% das terras incorporadas atualmente à produção alimentar no planeta são utilizadas para a pecuária. Há desperdício e ociosidade. Cálculos da FAO indicam que cerca de 65% das pastagens da América Latina e Caribe, por exemplo, encontram-se em processo de degradação.

A boa notícia: a equação ambiental dispõe de um oceano fundiário capaz de fazer da pecuária um doador de terras com duplo efeito redutor nas emissões – direta, pela redução do tempo de abate, e indireta, ao dispensar o desmatamento para expansão de fronteira agrícola.

A FAO concentra suas ações em três frentes: 1- melhorias de produtividade que reduzam as intensidades das emissões; 2- sequestro de carbono da atmosfera por meio de um melhor gerenciamento de pastagens e dos solos; e 3- melhor integração do gado no que chamamos de bioeconomia circular, a partir, por exemplo da reciclagem e melhor utilização dos resíduos do gado.

A má notícia: se os sistemas alimentares urdidos em milênios não galgarem um novo degrau evolutivo, quedas na produção associadas a mudanças climáticas poderão elevar em 20% a escala da fome até 2050. Em 2016, cerca de 815 milhões de pessoas sofreram de fome no mundo.

O aliado principal em busca da sustentabilidade é o legado de um repertório alimentar versátil e diverso, milenarmente redimensionado para atender a desafios mutantes da sobrevivência.
Essa sabedoria pode nos ajudar. A lição quase esquecida que ela encerra consiste em não sobrecarregar o organismo humano – e por extensão todo o planeta, de desequilíbrios decorrentes de uma inadaptação proteica ou calórica insustentável, com seus desdobramentos ameaçadoramente já visíveis: epidemia de obesidade, desmatamento, fome, rupturas climáticas, desordem metabólica e caos ambiental.

Nossa existência não reflete apenas o que comemos. Mas se não soubermos comer podemos perder o direito de existir.

Por José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), para o jornal Valor Econômico.

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