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Em Buenos Aires, a dedicação de uma família à carne bovina

Na churrascaria Don Julio, no bairro de Palermo, uma grelha de dez metros quadrados domina a sala, do mesmo modo que um piano de cauda atrai a atenção em um concerto.

A Don Julio foi classificada como o restaurante número um da Argentina na lista dos 50 melhores restaurantes da América Latina no ano passado. Todos os dias, uma fila de carnívoros, que esperam conseguir uma das mesas sem reserva, se forma ao longo da Calle Guatemala. A espera é temperada com prosecco, distribuído gratuitamente.

Dentro do restaurante lotado, que acomoda 87 pessoas, dá para ouvir o reconfortante sussurro da carne sobre o fogo a lenha. O som aguça o apetite como os sinos de Pavlov.

Na grelha enorme, bifes de chorizo e lomitos – dois dos cortes mais populares – são preparados a uma temperatura interna de 45 °C, um pouco mais crus que o habitual “bien jugoso” argentino. Durante seu preparo, a carne só recebe sal, de ambos os lados, um minuto antes de ser grelhada. A gordura que pinga escorre por uma canaleta em vez de cair no fogo.

Eu, que já escrevi quatro livros sobre carnes grelhadas, fiquei intrigado com isso. Uma das virtudes da grelha, segundo me disseram, é que a gordura que pinga infunde a carne com um defumado atraente.

“Quero apenas o sabor puro da carne, sem fumaça”, disse Pablo Rivero, o dono da Don Julio, que cuida do restaurante desde seus primórdios como um simples estabelecimento familiar até sua atual fama como a melhor parrilla de Buenos Aires.

Rivero, de 40 anos, é um líder no renascimento das churrascarias da cidade, juntamente com chefs como Santiago Garat, da Corte Comedor, e Leo Lanussol, da Proper. Durante anos, a cozinha clássica de Buenos Aires foi largamente definida pelas parrillas antiquadas, e os botecos locais – conhecidos como bodegones – que servem milanesas, empanadas e comida italiana com molho de tomate pesado. Agora é fácil encontrar um bom pão, queijos pungentes da Patagônia e picles caseiro, além da carne soberba.

Don Julio, churrascaria de tradição familiar em Buenos Aires (Maria Amasanti/Divulgação)

Porém, apesar de uma longa estação de cultivo e de um solo fértil, as verduras frescas ainda não são tão extensamente disponíveis como nos mercados americanos. Para garantir uma oferta constante de produtos sazonais, Rivero cultiva uma horta nos arredores da cidade, no solo rico de La Plata.

Na temporada, ele serve pimentão assado no fogo, saladas de folhas macias e uma saborosa abobrinha feita na grelha, com azeite, orégano e sal. Tomates gordos são regados com azeite de Mendoza e decorados com alcaparras salgadas, bagas e folhas.

De acordo com a tradição familiar, a Don Julio serve apenas carne de gado criado em pastos, método que já foi a regra na Argentina, mas que cada vez mais adota o confinamento.

Antes de os Rivero chegarem a Buenos Aires em 1994, a família possuía um açougue na cidade de Rosário, cerca de 290 quilômetros ao norte. Durante três gerações, eles criaram seu gado no pasto em uma ilha no Rio Paraná. A Don Julio, que Rivero administra desde que tinha 23 anos, continua comprometida com essa forma sustentável de criação.

Rivero recebe a maior parte de seus produtos diretamente de fazendeiros que criam gado da maneira que ele exige, nos pampas – as intermináveis pradarias da Argentina. Quando precisa complementar seu estoque, ele confia em Cacho Rios, um comprador no mercado de Liniers, o leilão da capital argentina, onde de 12 mil a 15 mil cabeças de gado são vendidas diariamente.

Rivero não abre mão de sua preferência por carne de gado criado no pasto. “A Argentina tem a ecologia ideal para a criação desse alimento antigo”, disse ele.

Em contraste com o gado de confinamento, que é alimentado com milho e soja e abatido entre os 14 e os 16 meses, os fornecedores de Rivero criam seus animais por 24 a 30 meses. Esse período mais longo nos pampas permite que desenvolvam a gordura intramuscular, marmórea, que garante a maciez e o sabor profundo.

Carnes na churrascia Don Julio, Buenos Aires (Maria Amasanti/Divulgação)

Quanto à carne seca, uma técnica popular, Rivero não é um fã. O processo permite que fungos aéreos interajam com a carne para criar um sabor distinto, que muitas pessoas acham atraente. Ele, por outro lado, busca o gosto inalterado da carne. “Se o animal for criado corretamente, sua carne já terá um sabor original e equilibrado.”

Deixar a carne secar e perder cerca de 30 por cento do seu peso, segundo estimativa de Rivero, é algo caro. Além disso, ele vê o processo como “um crime contra o sacrifício do animal”. Em espanhol, o uso comum da palavra “sacrificio”, em vez de “matanza”, transmite uma atitude mais íntima e significativa para a morte de um animal.

Em qualquer momento no restaurante, você encontrará Pepe Sotelo, o chef e mestre da grelha, trabalhando sobre uma profusão de bifes de chorizo, costelas e lomitos, bem como linguiças caseiras gordas e pães.

A grelha fica cerca de 15 centímetros acima de leito de carvão vegetal, com brasas ardendo. Se aproximar sua mão, você só poderá contar até três antes que o calor fique insuportável. Essa é a temperatura certa para preparar um filé perfeito.

Sob a supervisão do charcutier Guido Tassi, a Don Julio oferece uma variedade de linguiças caseiras, quase todas feitas de carne de porco e aparas de carne de vaca.

Tassi também faz um magnífico potro (prosciutto de pônei), que reflete a tradição equina de Argentina. Quando lhe disseram que a carne de cavalo não faria sucesso com os turistas da América do Norte, Rivero respondeu com um ditado bem conhecido do “Martín Fierro”, o poema épico que os argentinos leem na escola: “Todo bicho que camina va a parar al asador.” Todo bicho que anda acaba na grelha.

Preparo das carnes na churrascaria Don Julio, em Buenos Aires (Maria Amasanti/The New York Times)

Fonte: Exame.

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