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Custo de não fazer nada pelo ambiente pode ser brutal, diz Bachelet

“É preciso calcular o custo de não fazermos o que temos que fazer”, disse a ex-presidente chilena Michelle Bachelet à plateia reunida no auditório do resort em Da Nang, no Vietnã, para a 6a Assembleia do Global Environment Facility (GEF), o mais tradicional fundo ambiental mundial.

Bachelet — que é médica, foi ministra da Saúde e da Defesa de seu predecessor, Ricardo Lagos, e a primeira mulher a presidir o Chile (em duas gestões, de 2006 a 2010 e 2014 a 2018) — referia-se ao custo da inação em questões ambientais.
Ela seguiu em sua cruzada de conscientizar sobre os limites dos recursos naturais planetários.

“Temos que mudar nossos modos de consumir e Bachelet têm colocado estes pontos, ao lado de abordagens inclusivas e de gênero, em cada palestra que dá ou reunião internacional de que participa. Antes de chegar ao Vietnã esteve em Washington recebendo um prêmio pela sua liderança ambiental, e em Helsinque, em encontros de segurança e paz da ONU.

“O tempo dos políticos é diferente das urgências do planeta. Para questões ambientais não se pode apenas olhar no curto prazo”, seguiu.
Ao final de suas intervenções, a ex-presidente chilena concedeu esta exclusiva ao Valor, em uma sala do hotel Furama, com a condição de não falar sobre política. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: Nesta assembleia o que mais se ouve é a necessidade de promover mudanças.
Michelle Bachelet: Claro. Veja, o mundo entendeu que sofremos uma ameaça importante, que é a mudança climática, e que está produzindo efeitos mais rapidamente do que pensávamos. A Antártica sofre impactos muito fortes. Em Paris, em 2015, falei que no ano anterior tinha se registrado 17oC na Antártica, a mais alta temperatura registrada de que se tinha conhecimento. No Chile e no Brasil vivemos efeitos de secas e inundações tremendas. A poluição atmosférica forte provoca grandes problemas respiratórios, os pescadores têm dificuldades porque, muitas vezes, a indústria pesca excessivamente. Agricultores e pecuaristas sofrem com as secas. Estamos vivendo todo tipo de eventos de grande magnitude e de maneira mais frequente. É como se tudo estivesse exagerado. E claramente há uma tendência que antes não existia.

Valor: A senhora defende mudar hábitos de consumo e produção. Como fazer isso?
Bachelet: Os países precisam crescer, mas de maneira sustentável. E isso quer dizer que o meio ambiente também tem que ser sustentável.

Valor: Foi a senhora quem criou o Ministério do Meio Ambiente no Chile, em 2010.
Bachelet: No meu primeiro governo eu quis fortalecer a inclusão. Criamos o Ministério, que antes era um serviço muito pequeno e com poucas atribuições. Melhoramos a lei ambiental, que antes dava muito pouco espaço à cidadania.

Valor: Teve muita resistência à mudança da lei ambiental?
Bachelet: Sim, no Parlamento. Mas no final se aprovou uma lei melhor, não perfeita. No meu último governo eu já havia estado nas conferências climáticas de Paris, Lima, Marrocos. E fomos vendo que esta ameaça evolui muito mais rápido do que a capacidade dos países de resposta. Sabemos o que está acontecendo e o que temos que fazer, mas o que há é falta de implementação, de nos levar à ação. Isso acontece por várias razões.

Valor: Quais razões?
Bachelet: Nem todos os políticos percebem da mesma maneira a gravidade do tema. Os tempos políticos são mais curtos. Nem todo mundo se preocupa com o que é estratégico, mas mais com os quatro anos de governo.
As preocupações com meio ambiente têm que ser de longo prazo porque estes impactos não se resolvem de um dia ao outro. O que necessitamos é mudar os padrões de conduta assim como mudar os modos de produção.

Valor: Isso é difícil.
Bachelet: Mas não impossível. Veja os plásticos. Trabalhamos muito com ONGs especializadas em oceanos. As imagens destes animais morrendo, sufocados por sacolas plásticas, a quantidade de plásticos que encontraram em seus estômagos, isso espantou muita gente, sobretudo os jovens. É bem aquilo: uma imagem vale mais do que mil palavras. No Chile isso produziu a percepção massiva de que não se pode continuar assim.

Valor: O que o governo propôs?
Bachelet: Enviamos um projeto de lei para proibir o uso primeiro na zona costeira e agora isso vai seguir para o resto do país. Muitos prefeitos de cidades na costa já são conscientes do problema, eles recolhem o lixo e vêem o que está acontecendo. Muitos já tinham começado esse processo, de maneira voluntária, em suas próprias comunidades.

Valor: As sacolas plásticas estão proibidas no Chile?
Bachelet: O projeto está no Parlamento. Em Santiago, os supermercados já não entregam e as pessoas têm que comprar as recicláveis. Isso começa a criar uma cultura diferente. Às vezes algo que pode começar voluntário, antes de virar lei, já é realidade. E para as pessoas, começa a parecer normal e elas começam a mudar de comportamento. Isso tem que acontecer também em outras áreas. Temos que mudar a forma que produzimos energia, por exemplo. Não podemos continuar fazendo as coisas como antes. Podemos ter um benefício a curto prazo, mas um tremendo dano lá na frente.

Valor: A senhora diz que a percepção política ambiental mudou muito em 20 anos.
Bachelet: Há vinte anos falava-se nas espécies ameaçadas e na poluição atmosférica, o que está bem. Mas era visto como, bom, “animaizinhos”, “ecologistas”. Hoje em dia ambiente tornou-se como saneamos a economia em seus distintos setores. No transporte, nos modos de produção, na geração de energia. No Chile começamos a observar a agenda de setores estratégicos e a identificar onde poderíamos mexer. Buscar construções sustentáveis, turismo sustentável, melhores materiais e tecnologia. Em quatro anos triplicamos a quantidade de energia renovável na matriz com hidrelétricas, solar, eólica e geotérmica no Chile. Temos todo aquele sol no deserto do Atacama. E foi impressionante o ingresso de investimentos que este movimento provocou.

Valor: O setor privado viu como oportunidade.
Bachelet: Exato. Mostramos à iniciativa privada que mexer na energia é bom para o meio ambiente e é bom para a economia também. E que produzir assim pode ser um bom negócio. Reduzimos os preços da energia de US$ 130 para US$ 30 e assim não se encarecem os processos industriais e há um efeito positivo também para as pessoas. Em todas as áreas pode-se identificar onde se pode mudar. Algumas são mais difíceis, exigem mais acordos, mais tempo. Sempre há pressões para que a mudança não aconteça. Mas haverá pontos positivos também para aqueles, que inicialmente, queriam que nada mudasse.

Valor: Uma cidade difícil como São Paulo pode mudar?
Bachelet: O Estado de São Paulo tem uma população grande como todo o Chile. Nas cidades, as mudanças são mais difíceis, mas sim, se pode. Em Santiago conseguimos mudar os altos índices da poluição do ar, e isso antes do meu governo. Mudamos o tipo de ônibus, foram adotadas várias medidas. Cidades podem tomar o rumo sustentável na construção de moradias, nos meios de transporte, nos programas para crianças e pais para uma alimentação mais saudável. Sempre há tensões e grupos que não querem que as coisas avancem. Uma cidadania mais consciente e empoderada ajuda os líderes a tomar as decisões que têm que ser tomadas.

Valor: É possível alterar a produção de alimentos?
Bachelet: A produção de leite e gado emite quantidades enormes de metano. Alguns lugares pensam em mudar a alimentação dos rebanhos. Me contaram que no Brasil há um projeto interessante em que se introduz cevada na ração e que isso melhora a produção e muda os parâmetros de emissão. Também aí tem que se mudar os modos de consumo. Comer menos carne também é bom para baixar o colesterol. Mas nada disso é fácil. Para a maioria das pessoas, dos coletivos, das empresas e dos governos é mais fácil continuar fazendo as coisas como sempre.

Valor: No Chile as escolas introduziram na grade temas ambientais e mudança do clima. Como foi?
Bachelet: O Ministério do Meio Ambiente trabalhou junto ao da Educação. Começamos o programa em uma escola pública em uma zona pobre de Santiago que tinha professores muito ativos com estes temas, que tinha uma pequena estufa, e por isso as crianças já tinham contato com as plantas. Neste tipo de ação, o efeito não acontece só nas crianças, que, claro, são as futuras gerações que terão um olhar diferente de como se pode vincular a economia com o meio ambiente. Mas elas chegarão com estas experiências em casa, contarão aos pais. Fizemos assim, por exemplo, para lutar contra a obesidade infantil.

Valor: Como foi?
Bachelet: Começamos revisando as informações sobre merenda escolar e alterando o cardápio para que não fosse hipercalórico. Aumentamos a carga de ginástica. Os quiosques privados que vendiam salgadinhos teriam que passar a vender iogurtes, maçãs, palitos de cenoura. Também trabalhamos com os pais para que eles, em casa, pudessem fornecer alimentos mais saudáveis. Com o meio ambiente é a mesma estratégia. Montamos um programa para que também os pais pudessem receber mais informação de o que fazer em casa. Essas são as novas gerações, que irão herdar o mundo que deixaremos a eles.

Valor: A senhora diz que é necessário que se calculem os custos na economia do que deixamos de fazer. O que quer dizer?
Bachelet: Este é um antigo tema meu, não só com meio ambiente. Acredito que os países têm que ter programas de proteção social, para que as pessoas mais pobres possam parar sobre seus próprios pés e seguir adiante. Quando se fala com os ministros de Finanças, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, discute-se sempre o que aquilo custa. “A saúde custa tanto”, “a educação custa tanto”. Não, isso é investimento nas pessoas, não é custo.

Valor: Mas é preciso calcular as externalidades.
Bachelet: Quando era ministra da Saúde ou presidenta, sempre perguntavam os custos de campanhas contra a violência da mulher ou o custo de implantar centros de atendimento à mulher. Não se calculam o custo da mulher que está hospitalizada, que deixa os filhos com outra pessoa, que não vai trabalhar porque não pode, os custos para a família se ela morrer. No caso do meio ambiente a pergunta é saber qual o custo de não fazermos o que temos que fazer. É possível que este custo, a curto prazo, seja um pouco maior, mas não fazer significa ter um custo brutal a médio e longo prazo.

Valor: A senhora tem exemplos?
Bachelet: Sim. No Chile havia zonas com enorme quantidade de árvores de avocados. Houve uma forte seca, o avocado usa muita água e os camponeses perderam todas as árvores. Temos que apoiá-los para que possam ter outro tipo de produção agrícola mais amigável com o clima que temos agora, com a menor quantidade de água.

Valor: Adaptar-se.
Bachelet: Sim, a seca, já sabemos, não vai durar um minuto. Já temos dez anos de seca, isso é uma tendência. Não é pensar só no custo de tomar decisões de como proteger o oceano ou criar parques nacionais e discutir porque no parque não se pode colocar gado. Mas o turismo sustentável será uma enorme fonte de receitas. Foi o mesmo com os oceanos.

Valor: Como foi?
Bachelet: Ampliamos para 43% a área de proteção dos oceanos na zona econômica exclusiva. Assim conseguimos recuperar os estoques de espécies que havíamos perdido e apoiamos os pescadores para que pudessem continuar com pescas menos predatórias. Em espanhol há uma frase que diz ‘pan para hoy, hambre para manana’. Não queremos isso. Queremos pão para hoje, oxalá, mas muito pão para amanhã. Isso quer dizer que temos que cuidar do que existe para que possa seguir nos provendo de recursos.

Valor: Neste evento trataram de incluir questões de gênero nos debates. Como foi isso?
Bachelet: Gênero também tem uma dimensão em meio ambiente. A mulher toma decisões permanentemente. Em países africanos têm que ir coletar a madeira, e pode, portanto, ser um fator de desmatamento ainda que por um bom propósito que seja cozinhar ou esquentar a casa. Ela pode ter um papel muito positivo como agente de mudança.

Valor: Um novo debate no mundo relaciona clima e segurança.
Bachelet: A mudança do clima é um dos fatores de desestabilização do mundo hoje em dia, de geração destes deslocamentos massivos dentro dos próprios territórios e entre países, sobrepondo-se a problemas que já existem. Há poucos dias, na Nigéria, houve mais de 80 mortos entre camponeses e produtores de gado por conflitos de terra e de água.

Valor: O mundo está em fase turbulenta. Não é o mesmo momento de 2015, quando houve condições para o Acordo de Paris.
Bachelet: Aconteceram muitas coisas. Mas não é possível querer fazer as coisas igual a antes porque o passado foi glorioso. Temos que cuidar do mundo atual. A população cresceu de maneira exponencial e muito do mercado exportador se transferiu para países da Ásia, não mais na América Latina. O mundo mudou. Tem que se notar isso, inovar, fazer algo diferente. Lidamos com a volatilidade geopolítica e econômica, a polarização em alguns países, as migrações. Na raiz das migrações muitas vezes há conflitos internos, os impactos da mudança do clima e falta de desenvolvimento. E as pessoas, naturalmente, buscam uma alternativa. Temos que enfrentar os problemas, observar suas causas. Vai continuar tendo muita gente que migra. Queria fazer um comentário que pode parecer frívolo, mas não é.

Valor: Claro, diga.
Bachelet: Nós, nos nossos países, somos filhos e netos de imigrantes. No Chile tivemos forte migração de haitianos, dominicanos e, recentemente, venezuelanos. São processos que geram temor em algumas pessoas e sua resposta é ser mais nacionalista, tentar impedir o ingresso. Gosto de futebol, quando posso vejo os jogos da Copa. Vi seleções que ganharam partidas e nelas 80% são filhos ou netos de imigrantes, dá para perceber pelas características físicas, pelos nomes. Pensei: as pessoas que dizem que não querem mais imigrantes, estarão festejando hoje com este time, onde há filhos de imigrantes? Espero que sim. E que também assumam que outras culturas podem trazer aprendizagem com a diversidade.

A jornalista viajou ao Vietnã a convite de Internews Earth Journalism Network.

Fonte: Valor Econômico.

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